A traição é tema recorrente para a humanidade. Em uma sociedade monogâmica, a possibilidade de trair/ser traído é algo que mexe com a maioria dos casais, com uma atração/repulsa quase sublime. Este é um dos temas que ficam só na nossa cabeça, e poucas vezes ousamos falar sobre ele. Por isto mesmo talvez choque tanto quando é abordado de forma tão direta em filmes e livros. Por tudo isto, a traição é algo que mexe com nosso inconsciente e desperta nossa imaginação. Duas histórias demonstram bem este fato. Um dos contos de Marcel Proust, denominado O Fim do Ciúme retrata um romance secreto. Mas um comentário de um conhecido sobre a mulher amada desperta no amante a dúvida, e ele entra num estado de constante paranóia:
Mas quando estava longe de Françoise, às vezes também quando, estando perto dela, via seus olhos brilharem com um fogo que ele logo imaginava aceso outrora (...), aceso por outro; quando, logo após ceder ao desejo puramente físico por outra mulher, e se lembrar de quantas vezes havia cedido a isso e conseguido mentir a Françoise sem deixar de amá-la, já não achava mais absurdo supor que ela também lhe mentia, que sequer era necessário amá-lo para lhe mentir, e que antes de conhecê-lo ela se lançara sobre outros com esse ardor que o consumia agora (...) (PROUST, 1997, p. 66).
A imaginação às vezes pode ser nossa pior inimiga. A dúvida e a insegurança podem levar ao ciúme, aumentado então pela imaginação. O simples pensar na mulher amada nos braços de outro faz de Honoré, personagem deste conto de Proust, se entregar a um estado lastimável. Ele já não dorme, não come, e em todos os momentos em que está com Françoise, apenas busca em seus gestos, seus olhares, suas palavras, algo que confirme que ela nunca o tivera traído. Mas suas juras de amor e suas promessas de que é apenas dele já não o convencem mais. E quando está longe, ai sim Honoré se entrega a um estado de sofrimento terrível por imaginar que sua amada, a essa altura está nos braços de outro.
Caso parecido se dá com William Harford, personagem de Tom Cruise no filme de Stanley Kubrick, De Olhos Bem Fechados. Após ouvir de sua esposa que ela teria sentido desejo por outro homem no passado, Harford passa a ser atormentado pelas imagens de sua esposa nos braços de outro homem. Desnorteado, sai pela cidade e acaba em lugares que nunca imaginara existir, num jogo de desejo e perversão. Imaginar que a mulher sente desejo por outros é algo que castiga nossos personagens e povoa a imaginação masculina. A mulher lasciva, ao mesmo tempo que atrai o desejo masculino, causa medo e nos faz recuar. Tudo gira em torno do desejo, como constata Honoré na obra de Proust, quando, prestes a morrer, imagina que tipo de homem desejaria que se casasse com sua amada Françoise:
É preciso que seja um homem que a ame de verdade. Por que é que eu não quero que seja um homem da noite? (...) Por que a amo por ela mesma, quero que seja feliz? - Não, não é isso, é porque não quero que alguém a excite, que lhe dê mais prazer do que eu lhe dei, que lhe dê prazer algum. Aceito que alguém lhe dê felicidade, quero que alguém lhe dê amor, mas não quero que ninguém lhe dê prazer. Tenho ciúmes do prazer desse alguém, do prazer dela. Não terei ciúmes do amor entre eles (PROUST, 1997, p. 84).
Este é precisamente também o caso de Harford. Sua esposa não está envolvida emocionalmente com outro homem, não é um caso de amor. Mas ao imaginar que ela poderia se entregar sexualmente a outro homem, que ela poderia sentir prazer nos braços de outro, isso o incomoda, o castiga. A imaginação é o pior dos castigos. Ela nos escraviza e nos faz sentir a respeito de coisas que talvez nem tenham acontecido. Talvez por isto mesmo tal assunto tenha se tornado um tabu. Tem certas coisas que pensamos e imaginamos, mas que não devem ser ditas. Às vezes é melhor continuarmos de olhos bem fechados.
Referências
PROUST, Marcel. O Indiferente e O Fim do Ciúme. São Paulo: Scrinium, 1997.
Referências
PROUST, Marcel. O Indiferente e O Fim do Ciúme. São Paulo: Scrinium, 1997.
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