
Durante os séculos que precederam à organização dos cultos Afro-Brasileiros, o poder da Igreja Católica se fez notar através da figura da Inquisição. Esta fazia questão de reafirmar os dogmas católicos perseguindo e condenando à fogueira e ao enforcamento os praticantes de outras fé's, consideradas hereges e demoníacas. Este discurso permaneceu presente no imaginário católico mesmo após o fim da Inquisição, e marcou a história das religiosidades Afro-Brasileiras de forma cabal. No caso específico da Umbanda, religião afro-brasileira que surge a partir da mistura de elementos católicos, africanos e indígenas, são conhecidos dos estudiosos desta religião os casos de perseguição a ela, efetuada pela Igreja Católica durante os anos de 1950.
Os confrontos entre neopentecostais e adeptos das religiões afro-brasileiras há algum tempo vêm sendo amplamente divulgados pela mídia, e na última década têm sido objeto de estudo de pesquisadores de diversas áreas do conhecimento dentro da academia. A base dos confrontos destes dois grupos religiosos está na associação das religiões afro à ação do demônio, feita por parte dos grupos evangélicos. Segundo Ramos (2007), todo evangélico está inserido em uma “batalha espiritual”, na qual as forças cósmicas do bem e do mal combatem incansavelmente pela posse das almas humanas.
(...) Os evangélicos, tomando a Bíblia como referência e interpretando seu texto a partir das matrizes protestantes de leitura colocam-se em combate. (...) Seu propósito: convencer o maior número possível de pessoas a se afastarem das “forças do mal”. (...) Os evangélicos possuem a responsabilidade de garantir que o mal não triunfe totalmente na esfera espiritual (RAMOS, 2007, p. 57).

Em Goiás não poderia ser diferente. A intolerância e perseguição aos cultos afros causaram um impacto fulminante no número de fiéis destas religiões, desde a década de 1980. Enquanto os cultos neopentecostais crescem em proporções assustadoras (100% de crescimento da década de 90 para 2000), os cultos afro diminuem consideravelmente. E em Goiás este quadro é ainda pior, como demonstram os números do último Censo (2010), que apontam Goiás com um número de adeptos das religiões afro abaixo da média nacional.
O ápice desta perseguição, e que deixou bem claro a força da comunidade evangélica na capital goiana foi o “Episódio Vaca-Brava”, ocorrido em novembro de 2003. O episódio foi analisado por Ramos (2007), cuja obra recorreremos, principalmente, para narrar e estudar este importante capítulo da história das religiões afro-brasileiras de Goiânia.

Tal manifestação foi liderada por um líder evangélico da Igreja Ministério Comunidade Cristã, atual Fonte da Vida. Trata-se do Pastor Fábio Sousa, que contou ainda com o apoio e participação de membros de inúmeras outras denominações evangélicas. Os debates e manifestações contrárias à exposição duraram apenas quatro dias, do dia 18 a 21 de novembro, tempo suficiente para que inúmeros artigos e reportagens fossem publicados em jornais da cidade dando notícias do conflito que se instalara em torno das estátuas.
Segundo texto do pastor publicado no jornal Diário da Manhã na época, o fato de haver uma exposição que represente a cultura africana e afro-brasileira é uma discriminação com outras formas religiosas pela ausência de representação destas. Trata-se de argumento perigoso, pois ele pode ser reivindicado por outras religiões, como pelas afro-brasileiras, quando vemos representações católicas ou evangélicas em espaços públicos, como é o caso dos crucifixos e quadros religiosos largamente utilizados em repartições públicas, dos próprios presépios expostos pela cidade na época do natal, ou a utilização dos lagos e estádios para a realização de cultos e batizados por parte de evangélicos.

A repercussão negativa em torno da estátua demonstra como o discurso evangélico se organiza para combater as religiões afro-brasileiras. Todas as religiões consideradas como “religiões mediúnicas”, por terem como característica principal o fenômeno da incorporação, são vistas por Edir Macedo como demoníacas e, como o demônio é algo a ser combatido, isto justifica toda a perseguição e difamação propagada, não só pela IURD, como por outras denominações evangélicas, como pudemos perceber pelo “Episódio Vaca-Brava”.
Daí vem a necessidade dos cristãos evangélicos em combater as religiões afrobrasileiras, para eles associadas à ação do demônio cristão. Para Ramos (2007), tal postura se constitui numa parte fundamental da identidade evangélica. Os membros desta religião são incentivados a perseguir e trazer para o seu lado o “outro”, aquele que está fora de seu campo religioso, considerado do lado da perdição, e que necessita ser salvo. A missão evangélica é levar a salvação ao resto da humanidade, convencendo o maior número possível de pessoas que a única forma de salvação está na conversão para sua igreja.
Desse modo, para a comunidade evangélica, a discriminação às religiões afrobrasileiras representada pelas manifestações contra a exposição dos Orixás no Parque Vaca Brava não constituem um ato de intolerância religiosa, mas sim em sua missão de denunciar e livrar a cidade da ação destes demônios. Este caso ocorrido em Goiânia é apenas mais um entre inúmeros outros casos que vêm acontecendo em todo o país nas últimas décadas.
[Este texto é o resumo de um artigo publicado nos Anais do 14º Encontro de Geógrafos da América Latina, com o título: "A Hierarquização Religiosa do espaço urbano - o caso das Religiões Afro-Brasileiras". O texto completo pode ser lido no endereço: http://www.egal2013.pe/wp-content/uploads/2013/07/Tra_Leo-Carrer.pdf]
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