9 de set. de 2013

A perseguição neopentecostal aos cultos afro-brasileiros

Os conflitos entre religiões cristãs e outras denominações religiosas tem sido uma constante ao longo da história da humanidade. Tais conflitos marcaram profundamente a história das inúmeras religiões Afro-Brasileiras, que se desenvolveram no Brasil a partir dos contatos entre as práticas religiosas dos africanos escravizados, grupos indígenas, e do catolicismo português, e continuam ainda hoje a tomar corpo e forma no discurso de algumas denominações pentecostais e neopentecostais.


Durante os séculos que precederam à organização dos cultos Afro-Brasileiros, o poder da Igreja Católica se fez notar através da figura da Inquisição. Esta fazia questão de reafirmar os dogmas católicos perseguindo e condenando à fogueira e ao enforcamento os praticantes de outras fé's, consideradas hereges e demoníacas. Este discurso permaneceu presente no imaginário católico mesmo após o fim da Inquisição, e marcou a história das religiosidades Afro-Brasileiras de forma cabal. No caso específico da Umbanda, religião afro-brasileira que surge a partir da mistura de elementos católicos, africanos e indígenas, são conhecidos dos estudiosos desta religião os casos de perseguição a ela, efetuada pela Igreja Católica durante os anos de 1950.

Os confrontos entre neopentecostais e adeptos das religiões afro-brasileiras há algum tempo vêm sendo amplamente divulgados pela mídia, e na última década têm sido objeto de estudo de pesquisadores de diversas áreas do conhecimento dentro da academia. A base dos confrontos destes dois grupos religiosos está na associação das religiões afro à ação do demônio, feita por parte dos grupos evangélicos. Segundo Ramos (2007), todo evangélico está inserido em uma “batalha espiritual”, na qual as forças cósmicas do bem e do mal combatem incansavelmente pela posse das almas humanas. 

(...) Os evangélicos, tomando a Bíblia como referência e interpretando seu texto a partir das matrizes protestantes de leitura colocam-se em combate. (...) Seu propósito: convencer o maior número possível de pessoas a se afastarem das “forças do mal”. (...) Os evangélicos possuem a responsabilidade de garantir que o mal não triunfe totalmente na esfera espiritual (RAMOS, 2007, p. 57). 

Portanto, a ação de algumas das igrejas neopentecostais, em especial a IURD, tem como ponto de partida uma “teologia assentada na ideia de que a causa de grande parte dos males deste mundo pode ser atribuída à presença do demônio, que geralmente é associado aos deuses de outras denominações religiosas” (SILVA, 2007-b, p. 11). As religiões afro-brasileiras são alvos privilegiados destes ataques. Os preconceitos a que estiveram associadas estas religiões ao longo de sua história são reforçados e ampliados por programas de TV e discursos de pastores com o objetivo de desqualificar os símbolos do panteão afro.

Em Goiás não poderia ser diferente. A intolerância e perseguição aos cultos afros causaram um impacto fulminante no número de fiéis destas religiões, desde a década de 1980. Enquanto os cultos neopentecostais crescem em proporções assustadoras (100% de crescimento da década de 90 para 2000), os cultos afro diminuem consideravelmente. E em Goiás este quadro é ainda pior, como demonstram os números do último Censo (2010), que apontam Goiás com um número de adeptos das religiões afro abaixo da média nacional. 

O ápice desta perseguição, e que deixou bem claro a força da comunidade evangélica na capital goiana foi o “Episódio Vaca-Brava”, ocorrido em novembro de 2003. O episódio foi analisado por Ramos (2007), cuja obra recorreremos, principalmente, para narrar e estudar este importante capítulo da história das religiões afro-brasileiras de Goiânia. 

Tudo começou no dia 19 de novembro de 2003, véspera do dia da consciência negra. Pouco mais de quinhentas pessoas presenciaram uma manifestação digna de uma verdadeira “guerra espiritual” no Parque Vaca Brava, importante ponto turístico da capital goiana, localizado em área nobre da cidade. A manifestação era por causa de oito estátuas, cada uma com aproximadamente sete metros de altura, expostas no meio do lago do parque, e que representavam oito Orixás do panteão de divindades afro, a saber, Oxalá, Ogum, Xangô, Oxum, Iansã, Iemanjá, Nanã e Logunedé.

Tal manifestação foi liderada por um líder evangélico da Igreja Ministério Comunidade Cristã, atual Fonte da Vida. Trata-se do Pastor Fábio Sousa, que contou ainda com o apoio e participação de membros de inúmeras outras denominações evangélicas. Os debates e manifestações contrárias à exposição duraram apenas quatro dias, do dia 18 a 21 de novembro, tempo suficiente para que inúmeros artigos e reportagens fossem publicados em jornais da cidade dando notícias do conflito que se instalara em torno das estátuas.

Segundo texto do pastor publicado no jornal Diário da Manhã na época, o fato de haver uma exposição que represente a cultura africana e afro-brasileira é uma discriminação com outras formas religiosas pela ausência de representação destas. Trata-se de argumento perigoso, pois ele pode ser reivindicado por outras religiões, como pelas afro-brasileiras, quando vemos representações católicas ou evangélicas em espaços públicos, como é o caso dos crucifixos e quadros religiosos largamente utilizados em repartições públicas, dos próprios presépios expostos pela cidade na época do natal, ou a utilização dos lagos e estádios para a realização de cultos e batizados por parte de evangélicos. 

Portanto, tal discurso vem de uma denominação religiosa que quase sempre se utiliza deste mesmo espaço público da forma que bem entende, mas ao ser confrontada pelo mesmo direito sendo exercido por outra denominação religiosa, protesta e adota posição contrária à mesma. Percebemos assim como estas religiões evangélicas buscam afirmar sua territorialidade a partir de seu discurso religioso. Além disto, as estátuas dos Orixás não representavam apenas as religiões afro, mas “indicavam uma realidade muito superior a apenas uma dimensão religiosa, assinalavam o mais alto grau de abstração lógica, como, também, mito-poético alcançada por impérios e comunidades africanas pré-diáspora” (RAMOS, 2007, p. 67).

A repercussão negativa em torno da estátua demonstra como o discurso evangélico se organiza para combater as religiões afro-brasileiras. Todas as religiões consideradas como “religiões mediúnicas”, por terem como característica principal o fenômeno da incorporação, são vistas por Edir Macedo como demoníacas e, como o demônio é algo a ser combatido, isto justifica toda a perseguição e difamação propagada, não só pela IURD, como por outras denominações evangélicas, como pudemos perceber pelo “Episódio Vaca-Brava”. 

Daí vem a necessidade dos cristãos evangélicos em combater as religiões afrobrasileiras, para eles associadas à ação do demônio cristão. Para Ramos (2007), tal postura se constitui numa parte fundamental da identidade evangélica. Os membros desta religião são incentivados a perseguir e trazer para o seu lado o “outro”, aquele que está fora de seu campo religioso, considerado do lado da perdição, e que necessita ser salvo. A missão evangélica é levar a salvação ao resto da humanidade, convencendo o maior número possível de pessoas que a única forma de salvação está na conversão para sua igreja.

Desse modo, para a comunidade evangélica, a discriminação às religiões afrobrasileiras representada pelas manifestações contra a exposição dos Orixás no Parque Vaca Brava não constituem um ato de intolerância religiosa, mas sim em sua missão de denunciar e livrar a cidade da ação destes demônios. Este caso ocorrido em Goiânia é apenas mais um entre inúmeros outros casos que vêm acontecendo em todo o país nas últimas décadas.

[Este texto é o resumo de um artigo publicado nos Anais do 14º Encontro de Geógrafos da América Latina, com o título: "A Hierarquização Religiosa do espaço urbano - o caso das Religiões Afro-Brasileiras". O texto completo pode ser lido no endereço: http://www.egal2013.pe/wp-content/uploads/2013/07/Tra_Leo-Carrer.pdf]

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