A recente Greve dos Caminhoneiros iniciada no dia 21 de Maio levantou diversos debates na sociedade brasileira, e serviu para colocar em cheque grande parte das ideologias políticas, tanto da esquerda quanto da direita brasileira. Os inúmeros elementos sociais e políticos presentes neste movimento foram capazes de colocar em choque vários personagens políticos, e expôs a fragilidade das análises polarizadas que vinham predominando no país desde as manifestações de junho de 2013. A seguir fazemos um levantamento das principais divergências e mostramos porque esta Greve teve a capacidade de demonstrar como a realidade vai além de toda e qualquer tentativa de dicotomização.
Não se sabe ao certo de onde partiram as iniciativas para os movimentos de greve deflagrados no Brasil neste mês de maio. Segundo vários jornais davam conta alguns dias após o início do movimento, o governo já havia sido avisado no ano passado sobre a possibilidade de uma paralisação nacional de caminhoneiros através de ofícios enviados ao Planalto. Ainda segundo os noticiários, tais avisos teriam sido dados por duas associações de caminhoneiros: a primeira é a Associação Nacional dos Caminhoneiros (ABCAM) e a segunda a Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos (CNTA). Nos avisos, as associações alertavam para os perigos de uma paralisação dos caminhoneiros e os prejuízos que elas poderiam trazer ao país. Isto demonstra que várias associações de caminhoneiros já planejavam e se organizavam para a paralisação de 21 de maio, e que inclusive tentaram estabelecer negociações com o governo antes de partir para as vias de fato.
Após terem seus pedidos ignorados, a greve foi deflagrada e vários discursos nas redes sociais passaram a tentar compreender o movimento que então surgia. Na esquerda, alguns personagens se levantaram para denunciar o fato de que, no fundo, não se tratava de uma greve, mas um movimento de Locaute (LockOut), ou seja, quando os próprios patrões estão envolvidos nas paralisações para atingir determinados objetivos, o que difere da greve, da qual apenas os empregados participam. Segundo os que levantavam esta tese, isto seria suficiente para demonstrar que o movimento de paralisação dos caminhoneiros na verdade estava sendo gestado por grandes empresários, que articulavam a paralisação de seus empregados para forçar o governo a atender suas reivindicações (diminuição do preço do diesel e dos pedágios). Isso, aliado ao fato de que muitos caminhoneiros defendiam pautas conservadoras, como as várias faixas com pedidos de intervenção militar espalhadas demonstravam, fez com que setores da esquerda brasileira passassem a não ver este movimento com bons olhos, muitos deles tentando desmoralizá-los.
Outros personagens, no entanto, alertavam para o fato de que este movimento era muito mais complexo do que as narrativas do Locaute faziam parecer. Especialmente depois das negociações com o governo, capitaneadas por aquelas mesmas associações que haviam tentado alertar o governo para os perigos de um movimento de caminhoneiros, a situação se fragmentou e demonstrou a grande heterogeneidade do movimento. Os caminhoneiros autônomos resolvem manter as paralisações, sob a alegação de que os itens negociados com o governo não os contemplavam. Estes passam a ser apoiados por muitos personagens da direita conservadora, especialmente pelos pedidos de intervenção militar e pelas discussões a respeito da redução dos impostos, pauta recorrente dos teóricos neoliberais. Graças a estas pautas e apoios recebidos, muitos teóricos da esquerda passam a criticar o movimento dos caminhoneiros como um movimento alinhado com o pensamento conservador brasileiro. No entanto, outros intelectuais se levantam em apoio aos caminhoneiros, procurando demonstrar que, apesar de alguns discursos conservadores no seio do movimento, isto não invalida o fato de que se trata de um protesto encabeçado por trabalhadores lutando por seus direitos.
No centro desta discussão estão em jogo várias representações ideológicas a respeito das polarizações entre esquerda e direita. Como eu escrevi em texto anterior, se do lado da direita há uma criminalização das pautas progressistas encabeçadas em grande parte por movimentos que, agora, se consideram de esquerda - rotuladas como comunistas - por outro lado há também uma assimilação por parte da esquerda destes discursos, o que as levam a defender a ideia contrária: se a nós da esquerda somos criminalizados por defender pautas progressistas, temos que combater quem não as defendem. Assim, os caminhoneiros, ao defenderem pautas conservadoras, pelo menos em partes, como a intervenção militar, são imediatamente vistos por parte da esquerda como alinhados ao discurso conservador, e portanto devendo ser combatidos. As contradições deste discurso foram muito bem analisadas por Jack Durruti, citado pelo professor Rafael Saddi no print acima.
No seio da direita, no entanto, as interpretações foram muito mais contraditórias ainda. Inúmeros personagens do pensamento conservador brasileiro alternaram entre o apoio e a condenação das greves, e foram duramente rechaçados por suas posições. Alguns deles, inclusive, chegaram a defender as duas coisas, inicialmente se mostrando a favor da greve e depois mudando de posição, como foi o caso de Bolsonaro. Este demonstrou apoio aos caminhoneiros, principalmente pelos discursos conservadores que emergiam deles, como os pedidos de intervenção militar, e por um sentimento anti-temer, já que muitos caminhoneiros alegavam pretender a derrubada do governo. Logo o deputado voltou atrás, passando a pedir o fim dos bloqueios e o fim do movimento. No entanto, mesmo enquanto apoiava a greve, Bolsonaro foi duramente criticado e até mesmo chamado de comunista por parte de seus seguidores:
O mesmo aconteceu com outras figuras célebres da direita brasileira, como Rodrigo Constantino, Rachel Sheherazade, Kim Kataguiri (MBL) e o General Villas Boas, criticados por se posicionarem contrários à greve dos caminhoneiros e chamados inclusive de Comunistas - o que prova nossa tese anterior de que, para os conservadores, tudo o que se opõe a seus ideais é rotulado como "coisa de comunista". No caso da direita, os embates se dão em grande parte devido às diferentes formas de leitura da realidade que as próprias ideologias de direita proporcionam. Entre os mais próximos à academia, há a defesa do neoliberalismo e de uma menor intervenção do Estado na economia, o chamado Estado Mínimo. Isto foi o que motivou as críticas a Bolsonaro, por exemplo, que esboçou um posicionamento de que, caso eleito, iria remover as sanções impostas aos caminhoneiros pelo governo, o que foi considerado por parte de seus seguidores contrário à ideologia neoliberal, como se pode perceber no print acima. Ele foi inclusive comparado aos chavistas e chamado de "bolivariano" e "esquerdista de direita". Apesar de parecer contraditório, as críticas procuram evidenciar a postura estadista de Bolsonaro, comparável ao regime chavista. O que estes seguidores acabaram percebendo é que Bolsonaro está longe da ideologia neoliberal que tanto defendem, e se aproxima mais de um regime ultranacionalista de Estado forte e autoritário, daí sua comparação a regimes autoritários pretensamente de "esquerda", como o regime chavista e de Maduro na Venezuela.
Como pudemos perceber, a greve dos caminhoneiros nos proporcionou uma verdadeira aula de ciência política. Tanto na esquerda quanto na direita, os posicionamentos variaram bastante, chegando inclusive a se contradizerem. As posições, tanto da esquerda quanto da direita, que eram até certo ponto nítidas em suas polarizações, acabaram se dividindo entre apoios e críticas aos movimentos. Tais posições entraram em choque a partir dos dois aspectos que envolviam a greve: no plano político, tratava-se de uma greve de trabalhadores contra o governo, fazendo reivindicações que iriam resultar em melhores condições de trabalho para eles; do ponto de vista social, inúmeros discursos contrários à democracia e a determinadas pautas progressistas, como as falas machistas, ultra-nacionalistas e fundamentalistas demonstravam. Tanto a esquerda quanto a direita se dividiram entre apoiar ou criticar tanto a luta dos caminhoneiros no plano político quanto seus discursos no plano social. E isto demonstra o quanto precisamos superar as polarizações políticas e sociais se quisermos avançar nos debates e, mais do que isso, propor soluções para a crise política e social que enfrentamos neste momento.
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