30 de jun. de 2018

Intervenção militar e a importância da consciência histórica


Nos últimos anos temos acompanhado cada vez mais campanhas a favor de uma intervenção militar em nosso país. Desde os protestos de junho de 2013, a cada manifestação popular víamos faixas e camisetas pedindo intervenção, o que acabava sempre dividindo opiniões e gerando críticas de todos os lados. O mais recente episódio foi na greve dos caminhoneiros de junho de 2018, em que pôde-se ver um aumento considerável no número destas faixas e cartazes pedindo intervenção em meio aos grevistas. A complexidade que envolve estes discursos torna bastante difícil fazer qualquer análise dos mesmos, mas temos visto algumas tentativas de interpretar e dar sentido a estas solicitações. 


Os que defendem a intervenção militar se apoiam em alguns argumentos para fazê-lo. O primeiro e principal deles é a corrupção. Segundo eles, o objetivo de uma intervenção seria acabar com a corrupção no país. Na percepção destes, o exército seria visto como um bastião da moralidade, único capaz de fazer uma limpa no sistema político do país e de nos manter livres da corrupção. Tal visão advém de uma orientação histórica que associa o período em que os militares estiveram no poder no país a um período de bonança e progresso em todos os sentidos, sendo inclusive este período como "milagre econômico brasileiro", a partir de uma maior estabilidade econômica, uma política de incentivos fiscais e da chamada política de "integração nacional", baseada principalmente na execução de grandes obras no país, as chamadas "obras faraônicas", especialmente nos setores de transporte e elétrico. Apesar disso, em várias destas obras houveram denúncias de desvio de verbas e superfaturamentos, casos de corrupção abafados durante o período pela forte censura vigente. 

Ao mesmo tempo, do ponto de vista social, a ditadura representou um período de intensa repressão, censura e quebra dos direitos humanos. Através dos Atos Institucionais (AIs), os brasileiros tiveram seus direitos restringidos, sendo impedidos de realizar reuniões políticas consideradas subversivas e também a cassação dos direitos políticos de cidadãos envolvidos nestes atos; as músicas, peças de teatro, filmes e outros produtos culturais, além da própria imprensa, foram censurados previamente (ou seja, antes de serem lançados passavam por uma avaliação e podiam ter seus lançamentos impedidos); além da utilização da tortura como meio para se obter informações durante o regime. Os casos de prisões arbitrárias de cidadãos considerados subversivos, que podiam levar à tortura e morte dos mesmos foram comuns à época, e estão presentes em inúmeros relatos da época, resgatados por historiadores a partir dos arquivos. 

Diante de tudo isto, o que leva alguém a defender a volta de um regime como este? Seria falta de aulas de história, como alguns críticos tentam fazer parecer? A situação seria um pouco mais complexa. Primeiramente há na fala de alguns defensores a tentativa de dissociar a "intervenção militar" com a "ditadura militar". Segundo eles, não necessariamente uma intervenção militar cairia em uma ditadura nos moldes da que foi implantada no Brasil em 1964. O papel da intervenção seria apenas o de tirar os governantes que estão no poder e chamar novas eleições para que se elejam novos líderes políticos sem acusações de corrupção. Eles inclusive cunharam um termo que procura "abrandar" o tom que a expressão "intervenção militar" evoca: seria a "intervenção militar constitucional". Vários artigos jurídicos, aliás, já demonstram que a constitucionalidade neste caso não existe, e qualquer tipo de intervenção militar seria considerada inconstitucional

O segundo grupo que defende a intervenção são o daqueles que admitem que querem um regime tal qual o que aconteceu em 1964, mas estes tentam fazer um revisionismo histórico que desassocia o período do termo "ditadura". Para eles, nunca existiu uma ditadura militar no Brasil, o que aconteceu foi uma intervenção militar que tinha por objetivo frear o avanço do comunismo e das políticas de esquerda. A relativização chega inclusive aos casos de tortura e crimes cometidos pelo Estado no período, considerados apenas uma reação do governo aos criminosos comunistas que assolavam o país. Há, assim, todo um contorcionismo retórico que procura deslocar a interpretação dos fatos para outro viés, que coloca as ações de repressão do Estado na época apenas como uma reação normal para prender bandidos. Ignoram assim, em sua narrativa, os inúmeros casos de presos políticos, professores, jornalistas. políticos e outros que não cometeram crime algum além de se oporem abertamente ao regime militar e criticar as ações do governo, e que por isto foram duramente perseguidos, reprimidos, torturados, exilados ou mortos. 

Para tentar explicar um pouco essas distorções do passado histórico, podemos recorrer a uma corrente teórica que defende que toda sociedade possui uma "consciência histórica", e que é esta consciência que nos serve de orientação para a interpretação de nosso mundo. Conforme afirma o historiador alemão Jorn Rusen, precursor deste pensamento: 

O passado é, então, como uma floresta para dentro da qual os homens, pela narrativa histórica, lançam seu clamor, a fim de compreenderem, mediante o que dela ecoa, o que lhes é presente sob a forma de experiência do tempo (mais precisamente: o que mexe com eles) e poderem esperar e projetar um futuro com sentido. (...) O impulso para esse retorno, para esse resgate do passado, para essa dimensão de profundidade e para o itinerário dos arquivos é sempre dado pelas experiências do tempo presente. Não há outra forma de pensar a consciência histórica, pois é ela o local em que o passado é levado a falar - e o passado só vem a falar quando questionado; e a questão que o faz falar origina-se da carência de orientação da vida prática atual diante de suas virulentas experiências no tempo (RUSEN, Jorn, Razão Histórica. Brasília: EdUnB, 2001, p. 62-63). 

O passado é, portanto, extremamente importante para nós. É ele quem nos dá o sentido de orientação no tempo presente, é a partir das experiências do passado coletivo, chegadas através de nós por meio dos estudos históricos, que podemos ter uma percepção do que existiu antes de nós, e adquirimos assim uma noção de continuidade entre o nosso tempo e outras épocas. As experiências do passado humano nos permitem vislumbrar a existência de outras formas de se viver, de outras culturas e sociedades que vieram antes de nós. Não se trata de "não repetir os erros do passado" nem de utilizar a história como "mestra da vida" como encaravam os historiadores da antiguidade, mas sim da aquisição do que Rusen chama de "consciência histórica", que nos permite nos situarmos no tempo e compreendermos melhor o presente. No entanto, nem sempre as experiências do passado são percebidas da mesma forma por todos. Neste caso, há sempre uma desconfiança para o modo como a história é construída pelos historiadores, e uma tentativa de sobrepor à narrativa destes uma visão própria dos fatos. No caso da ditadura militar, isto é expresso por aqueles mais velhos que viveram o período da ditadura e reafirmam que as coisas "não eram como os historiadores pintam", mas sim um período de bonança e progresso econômico, além da sensação de segurança que se tinha. 

O que podemos perceber nestes discursos é que há uma percepção histórica do passado, no entanto ela é reconstruída conforme seus interesses. Aos historiadores são atribuídos a pecha de doutrinadores, comunistas que distorcem os fatos para enganar a população e esconder a "verdade" a respeito deste período e outros períodos históricos. A memória sobre o passado é, assim, conforme definia Hallbwachs, reconstruída a partir das experiências de hoje. Neste caso, são reconstruídas e distorcidas para se encaixar na visão política de mundo de determinados grupos. Tais distorções, acompanhadas pelos pedidos de "intervenção militar", segundo a antropóloga Rosana Pinheiro Machado, "representam um "pedido de socorro" de uma população descrente com a democracia representativa e para quem viver está cada vez mais difícil. "Não é um pedido por uma nova ditadura, mas sim para parar com a roubalheira e dar rumo para um país desgovernado". A falta de perspectiva com o presente levaria alguns grupos a relativizar o passado, desconfiar das narrativas oficiais de historiadores e apoiar ações que atentam contra a liberdade e a democracia. 

Por tudo isto é que, cada vez mais, se torna importante que não só historiadores como outros setores da sociedade se posicionem em relação a estes temas. Se no campo historiográfico e da ciência política há um consenso a respeito dos perigos de se flertar com o militarismo, uma vez que o mesmo tende quase sempre a utilizar medidas anti-democráticas e repressivas, e que longe de resolverem os problemas, apenas os agravam, na sociedade como um todo ainda persistem aqueles que desconfiam destas narrativas e preferem construir suas próprias versões do passado, relativizando toda a violência e repressão do período como necessárias para se manter a ordem. As narrativas históricas, no entanto, não são construídas no grito, a partir de posts violentos em redes sociais nem textões de facebook. É importante deixarmos claro sempre que as narrativas históricas são alicerçadas em pesquisas, documentos e fontes históricas. Só assim poderemos demonstrar o quão absurdo são estas defesas que, alicerçadas num discurso de "liberdade de expressão", acabam por defender medidas que atentam contra a democracia e que exortam regimes autoritários e violentos, que apenas refletem a face autoritária e violenta de quem os defende. 

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