9 de nov. de 2015

A romantização do passado

Domingo a tarde, família reunida conversando sobre as notícias da semana, não demora pra surgir aquele tradicional "ah, no meu tempo é que era bom". A frase, dita com aquela convicção quase celestial, logo é seguida por todos, que passam a rememorar seu passado idílico, não se esquecendo sempre de compará-lo com "os dias de hoje", taxados com os mais diversos adjetivos pejorativos, como "tempos perdidos" e coisas do tipo. Imagino que não seja só na minha família que haja diálogos deste tipo. A reverberação de tais ideias nos dá mostras de que há um sentimento generalizado e difuso que contrapõe passado e presente em condições desiguais de concorrência. Enquanto o primeiro é valorizado como extremamente positivo, o segundo é retratado como um tempo de perdição e degeneração. Esse pensamento, em tempos de crise, se torna mais comum ainda.

Explicar porque ocorre este fenômeno não é tarefa fácil. Mas Eclea Bosi (1994), professora de psicologia social da USP, em sua clássica pesquisa a respeito da memória dos idosos intitulada "Memória e Sociedade: lembranças de velhos", nos dá algumas pistas. Primeiramente é preciso que compreendamos como é constituída nossa memória. Talvez nunca tenhamos parado para pensar muito nisso, afinal o adulto, "entretido nas tarefas do presente, não procura habitualmente na infância imagens relacionadas com sua vida cotidiana; (...) o adulto ativo não se ocupa longamente com o passado" (BOSI, 1994, p. 60). Envolvidos nas tarefas diárias, não nos ocupamos muito na tarefa de rememorar o passado. Quando o fazemos, é apenas nos momentos de lazer, ou quando a instituição familiar nos leva a isso, como no exemplo citado no início deste texto. 


Portanto, para nós que não nos ocupamos muito em "lembrar", com certeza nunca paramos para pensar também no "como" funcionam os mecanismos das lembranças. Mas vários pesquisadores já o fizeram. Um deles é Maurice Hallbwachs (2006), em seu clássico "A memória coletiva", obra em que ele estuda não a memória em si, mas sim o que chama de "os quadros sociais da memória". Uma de suas conclusões mais brilhantes (e que mais nos interessam aqui) é a de que a memória não é como um sonho em que revivemos oníricamente o passado; a memória é, efetivamente, trabalho, esforço. Nas palavras de Bosi (1994, p. 55): 


O caráter livre, espontâneo, quase onírico da memória é, segundo Hallbwachs, excepcional. Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje. as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, "tal como foi", e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas ideias, nossos juízos de realidade e de valor. 

Nunca nos lembramos de um fato do passado da mesma forma. Também não é possível "reviver" exatamente os mesmos sentimentos que tivemos naquela ocasião. Estes sentimentos são amenizados pelo tempo e pelo nosso estágio atual. É por isso que dizemos quase sempre que "um dia vamos rir de tudo isso". Por mais ruim que a situação seja naquele momento, no futuro, ao nos lembrarmos dela, não iremos reviver estes mesmos sentimentos, mas reconstruir os fatos deste passado com as emoções positivas que estivermos vivendo no presente. Daí a possibilidade de rir, mesmo dos acontecimentos mais desagradáveis de nosso passado. 

Um aspecto importante desse trabalho de reconstrução é posto em relevo por Hallbwachs quando nos adverte do processo de "desfiguração" que o passado sofre ao ser remanejado pelas ideias e pelos ideais presentes do velho. A "pressão dos preconceitos" e as "preferências da sociedade dos velhos" podem modelar seu passado e, na verdade, recompor sua biografia individual ou grupal seguindo padrões e valores que, na linguagem corrente de hoje são chamados "ideológicos" (BOSI, 1994, p. 63). 

Se assim funciona a memória, fica fácil compreender o fenômeno da "romantização" do passado, feito principalmente por pessoas idosas. Primeiramente, há em nossa mente uma seletividade dos fatos do passado. Temos uma tendência a nos lembrar mais dos fatos positivos de nossa vida do que dos negativos, especialmente quando essas lembranças se dão nos momentos de lazer. Ou mesmo que relembremos de fatos negativos, eles são amenizados e reconstruídos com os sentimentos positivos que vivemos hoje. Estes fatos, quando confrontados com os dias atuais (especialmente em momentos de crise), ganham uma proporção maior do que realmente tiveram. Em nossas mentes, o passado vira sinônimo de alegria, um tempo bom em que as coisas eram melhores. 

Historicamente também percebemos este fenômeno. Como o próprio conhecimento histórico é uma reconstrução deste passado, feito por pesquisadores que constroem seus discursos a respeito do passado, isso abre margem para que uma infinidade de discursos diferentes sejam construídos. Um exemplo prático que recentemente tem sido pauta atualmente é a "ditadura militar" no Brasil. Enquanto muitos historiadores denunciam em suas pesquisas a tortura e falta de liberdade do período, outros (especialmente ligados às instituições militares) preferem reconstruir o período como de estabilidade social e político. Daí os inúmeros discursos que surgem pedindo a volta de um regime militar. 


Esta ideia, de que as coisas no passado eram melhores do que no presente, é uma falácia recorrente, portanto, e que sempre estará entre nós. Sobre este tema, me lembro de um filme de Woody Allen chamado "Meia Noite em Paris", em que um jovem escritor "imagina" a década de 1920 como sendo a melhor época que já existiu. Em um estranho fenômeno, o jovem consegue voltar no tempo para este período, e acaba conhecendo ídolos como F. Scott Fitzgerald, Gertrude Stein, Ernest Hemingway e Salvador Dali. Mas por outro lado, acaba conhecendo uma garota que reverencia o final do século XIX como sendo, sim, a melhor época que já existiu. Provavelmente poderíamos voltar até o início dos tempos neste processo. Cada geração sempre pensa que nos tempos de sua antecessora é que as coisas eram boas. Talvez seja apenas uma forma de fugirmos do "peso" do presente. 


Referências

BOSI, Eclea. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 
HALLBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. 

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