Lembro que li Capitães da Areia, romance de Jorge Amado ainda na adolescência, por exigência de um professor de português que tinha na época. Não me recordava muito da história, apenas que contava a saga de um grupo de crianças de Salvador que viviam na marginalidade, praticando pequenos (e às vezes grandes) roubos para sobreviver. Como li o livro na adolescência, ou seja, na passagem da fase infantil pra adulta, estava vivendo a mesma fase da vida que os próprios personagens descritos por Jorge Amado. Mas não podia deixar de ficar fascinado com o estilo de vida levado por aqueles garotos, algo totalmente novo e impensado pra mim, ainda preso em meu mundinho de família, brinquedos e estudos.
Questões como a criminalidade (devido à própria necessidade de sobrevivência), o sexo, as drogas, o homossexualismo, tudo ali era como um mundo distante pra mim. E conhecer este mundo por dentro, com os olhos de uma criança, me deixou muito perturbado na época. Estas são algumas das poucas lembranças que tenho do livro, e que agora me voltam à mente com o lançamento do filme de Cecília Amado baseado nesta obra. Capitães da Areia é um filme forte, magnificamente filmado, com uma fotografia belíssima e uma trilha sonora que só abrilhanta a trama. Os atores mirins escolhidos também não fazem feio, com destaque para a atriz que interpreta a Dora, um achado essa menina, de uma desenvoltura espetacular, chega a destoar do restante do elenco, quase sempre um pouco travado e burocrático, salvo algumas exceções.
Outro porém também fica pelo roteiro do filme, que tenta abordar várias passagens do livro mas sem se apegar a uma só, tornando o filme pra quem assiste uma coletânea de acontecimentos dispersos, sem que cada um deles seja aprofundado adequadamente, todos tratados de forma um tanto superficial. Pra quem já leu o livro e conhece os detalhes das histórias, fica mais fácil, mas quem não leu perde muitos detalhes mostrados de forma rápida. Talvez tivesse sido melhor escolher apenas uma história central (por exemplo o conflito com o grupo de Ezequiel) e tê-la explorado a fundo, para criar no espectador a noção de continuidade, de introdução, desenvolvimento e conclusão, chegando ao clímax, coisa que talvez seja mais difícil de se criar num filme do que num livro.
Apesar disto, o filme consegue captar o clima do livro com perfeição, e nos transporta para as ruas de Salvador onde Pedro Bala e seu grupo se viram como podem para sobreviver. Tal história levanta questões cruciais para compreender nossa sociedade e como lidamos com nossas crianças. Crianças brincando de ser adultos, forçadas a se inserirem num mundo que nem adultos deviam ser obrigados a conhecer. Por outro lado, a união do grupo, a busca de valores (como na parte em que Bala expulsa Ezequiel por estar roubando do grupo e afirma que só roubam lá fora), o companheirismo, a criatividade, o respeito aos mais velhos e àqueles que são identificados como aliados do grupo são questões abordadas por Jorge Amado e que demonstram um código de honra entre os jovens integrantes do bando.
Nunca foi preocupação do escritor resolver os problemas sociais. Seu livro não vem recheado de um moralismo hipócrita como muitos utilizam ao abordar estas questões. Daí talvez a genialidade de sua obra. Amado faz simplesmente um retrato cruel e contundente da situação de vida destas crianças inseridas na marginalidade. Não aponta soluções, e deixa claro mesmo que nem elas talvez quereriam viver de outra forma. A liberdade que desfrutam em seu estilo de vida, além da convivência com os companheiros os torna capitães de seu próprio destino. A incerteza do dia-a-dia e a falta de compromissos é o que os atrai. Não se trata aqui de romantizar a marginalidade e o crime, mas apenas de nos fornecer a visão do outro a respeito da questão. E talvez isto faça toda a diferença!