A Idade Média faz parte de nosso imaginário. Especialmente no que diz respeito à Inquisição. A caça às bruxas, torturas, mortes na fogueira são sempre retratados em filmes e livros com esta temática. Mas foi na Idade Moderna que a perseguição da Inquisição teve seu auge. Pouco sabemos do que efetivamente foi este período, do clima de insegurança e perseguição generalizada promovidos pela instituição católica. E, principalmente, pouco sabemos das torturas que ocorriam nos porões da Santa Inquisição, com o objetivo de obter as confissões de bruxas, práticas de feitiçarias e pactos demoníacos, tudo sob a supervisão da Santa Igreja Católica. Um exemplo pode ser encontrado na descrição a seguir. Trata-se de uma tentativa de fazer com que uma escrava confessasse ser bruxa e que retirasse os malefícios que se acreditavam ela ter colocado em sua senhora, que padecia doente. A descrição é minuciosa e chocante, e nos dá mostras do que a Igreja Católica era capaz de fazer com seres humanos:
Em Lisboa, as confissões de Luzia se revestiram de traços novos. A escrava contou que, ficando doente Josefa Maria, nada conseguia fazê-la melhorar, motivo pelo qual surgiu a suspeita de serem malefícios. Chamaram então o preto Francisco Ferreira, o tal que via por dentro e que queria dormir com ela. Foi logo dizendo que a autora dos malefícios era Luzia e que, nesta qualidade, só ela os poderia tirar. A senhora ordenou que o fizesse, caso contrário a castigaria. Luzia negou as acusações, insistindo que tudo eram falsidades e que nunca fizera feitiços, sequer sabia o que era isso.
Injuriada, Josefa Maria contou ao pai e ao marido; juntos, os três decidiram castigá-la para que confessasse o malfeito e o desfizesse. Prenderam-na e a torturaram com selvageria inaudita. Num braseiro muito aceso, aqueceram “duas grandes tenazes de ferro, com as quais depois de estarem vermelhas” as aplicaram sobre o corpo nu da desgraçada, que ficou cheia de chagas, em carne viva. Desfalecendo, Luzia confessou a autoria dos malefícios para se livrar do tormento. Como a senhora não melhorasse, voltaram a torturá-la. Apertaram-lhe a língua e nela passaram uma agulha com quatro linhas. Ataram-na a uma escada, ateando fogo ao pé dela; toda chamuscada, desmaiando a cada instante, Luzia confessou tudo quanto quiseram seus senhores: que fizera pacto com o demônio, vendo-se nesta ocasião cercada por luzes que lhe andavam à roda; que embruxara a criança, matando-a. Apesar do reconhecimento do pacto, os tormentos continuaram, pois Dona Josefa Maria não recobrava a saúde: com um cordel delgado, apertaram-lhe muito a cabeça; davam-lhe pancadas, jogavam-lhe púcaros de água fria, punham-lhe as pontas dos dedos dos pés em fechos de espingardas, descarregando sobre eles o cão, “que caindo de pancada lhe quebrava os ossos com grandes dores”; pingavam-lhe lacre aceso nas partes pudendas; atavam-na ao tronco, desconjuntando-lhe irremediavelmente o corpo, e desde então “nunca mais ficou com saúde, nem teve força para trabalhar, nem fazer o que lhe é preciso”. Com um pau de ponta fina, espetaram-na ao redor do olho esquerdo, que saiu do lugar e ficou cego. Com uma espada desembainhada, espancavam-na até lhe quebrarem o osso do ombro direito. Desesperada, “por várias vezes se quis matar com um canivete, do que Deus nosso Senhor foi servido livrá-la”. Mas o pior tormento de que padeceu foi ser açoitada por negros com molhos de varas do mato que a fizeram coberta de sangue. Depois, atavam-na sob o sol, as moscas mordiam, bichos lhe roíam a carne até os ossos. Teria morrido se outros escravos, penalizados, não tivessem acorrido e lhe lavado as feridas (...).
Depois de tudo por que passara, Luzia ainda desfilou acorrentada pelo arraial. Todos a viram; anos depois, ainda se comentava que fora “presa para Portugal pelo Santo Ofício”.
Trechos retirados do livro "O Diabo e a Terra de Santa Cruz", de Laura de Mello e Souza, publicado pela ed. Companhia das Letras em 1986, páginas 349 e 350.
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