Acompanhei de perto todo o imbróglio envolvendo Daniel Alves e mais um caso de racismo no futebol europeu, e creio que todos devem ter acompanhado também. Me refiro ao caso em que um torcedor do Villareal jogou uma banana no gramado perto do jogador brasileiro, quando este ia cobrar o escanteio. Seria apenas mais um caso típico de racismo no futebol, mais um pras estatísticas, se não fosse por um pequeno detalhe: Daniel Alves foi até a banana, descascou-a, comeu, e continuou o jogo como se nada tivesse acontecido. A reação inusitada gerou um buzz tremendo, com a repercussão em vários noticiários e jornais pelo mundo. No Brasil inclusive gerou uma campanha de apoio intitulada #SomosTodosMacacos.
Enquanto muitos aplaudiram a reação de Daniel Alves, alguns o criticaram por banalizar o ato racista, alegando que racismo não é coisa para se rir, e que o caso deve ser tratado com seriedade e punições exemplares, não com galhofas. Não creio que o jogador esteja muito preocupado com tudo isto. Após o jogo, Daniel Alves complementou seu ato dentro de campo com duras declarações a respeito da torcida espanhola: "Estou há 11 anos na Espanha, e são 11 anos iguais. Tenho que rir desses retardados". Uma constatação dura e triste ao mesmo tempo, de alguém que sabe bem do que está falando por ter sentido na pele. Então não acho que seja o caso de reprovar a galhofa de Daniel Alves. Ao comer a banana jogada por um racista, o jogador conseguiu trazer os holofotes para o fato e gerar um buzz que não aconteceria caso não tivesse feito nada.
Não é de Daniel Alves que temos que cobrar responsabilidades. Ele é a vítima, não o agressor, e qualquer reação que tenha será completamente irrelevante pro caso. Quem deve tomar providências são as autoridades competentes, apurando responsabilidades e com punições. Parece que o torcedor que jogou a banana foi proibido de entrar em estádios pelo resto da vida. O clube também deve pegar alguma punição. Isto é o que deve ser feito. Quanto à campanha que seguiu ao gesto de Daniel Alves, ela sim acho questionável. É louvável que todos queiramos prestar solidariedade ao jogador, mas talvez estejamos fazendo isto da forma errada. Além disto, a tal campanha foi criada por uma agência de publicidade, ao que parece com o objetivo de vender camisetas. Ou seja, até o combate ao racismo já está virando moeda de comércio.
Assumir um estereótipo negativo com o intuito de ressematizá-lo de forma positiva é uma estratégia válida de luta contra preconceitos. É o que acontece com o termo "macumba", por exemplo, que durante vários anos foi um termo usado pejorativamente para se referir de forma negativa às religiões afro-brasileiras, e agora vem sendo adotado por estas mesmas religiões afro como forma de se auto-identificarem, tentando trazer uma positividade ao termo: "somos macumbeiros sim, e daí". Neste caso, a reversão da semântica negativa atribuída ao termo talvez se deva ao fato de que ele não é utilizado para se referir a nenhum outro significante, não tem qualquer outro significado em nossa língua.
Em outros casos, tal estratégia talvez não seja possível. É o caso do termo "macaco" para se referir a seres humanos. Por ser um signo já associado a um outro objeto, no caso o animal macaco, é difícil para a mente humana desassociá-lo da imagem do animal. Isto faz com que a tentativa de positivar o termo seja frustrada pelo nosso próprio imaginário. Portanto, creio que tal campanha é perigosa, e possa sair pela culatra: mais reforçar um imaginário racista do que realmente combatê-lo. Todo este caso me fez lembrar de um fato marcante da história do movimento negro no Brasil, retratado no livro História do Negro no Brasil:
O exemplo mais explícito desse jogo de concessão e subversão era o “bloco do sujo”, ou seja, as pessoas que saíam vestidas com fantasias velhas e máscaras como se estivessem prontas para brincar o velho Entrudo. Vários ranchos cariocas tinham os seus “sujos”, que se vestiam sem qualquer luxo, brilho ou alegorias. O “sujo” de Tia Ciata era conhecido como “o macaco é outro”. Esse era o refrão que os participantes gritavam depois de colocar a mão nas máscaras, gozando da própria cor, e dizer baixinho “nós somos gente”, para em seguida gritar bem alto: “o macaco é o outro”. Talvez a ironia da brincadeira não fosse notada pela polícia, mas para os foliões era claro que o Carnaval inspirado na Europa não excluía a bem humorada crítica social.
Talvez devêssemos aprender com Tia Ciata e seu "bloco do sujo", que já na década de 20 no Brasil nos ensinava quem são os verdadeiros macacos nesta história.
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Referência:
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. FILHO, Walter Fraga. Uma história do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006. (Disponível on-line em: http://www.ceao.ufba.br/2007/livrosvideos.php)
Outros artigos sobre o tema:
Sobre macacos, bananas, Daniel Alves e Neymar: Não somos macacos, porra!
Campanha #SomosTodosMacacos pode reforçar racismo, diz especialista
Contra o racismo nada de bananas, nada de macacos, por favor!
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Referência:
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. FILHO, Walter Fraga. Uma história do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006. (Disponível on-line em: http://www.ceao.ufba.br/2007/livrosvideos.php)
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