25 de mar. de 2012

Os Demônios de Loudun

"É difícil encontrar um escritor da Idade Média ou da Renascença que não tenha como certo que a maioria dos membros que compõem o clero, do mais poderoso prelado ao mais humilde frade, é profundamente libertina". Esta é uma das frases mais impactantes proferidas por Aldous Huxley em seu livro "Os Demônios de Loudun", escrito em 1952. Famoso pelo clássico Admirável Mundo Novo, considerada sua obra-prima, o escritor também se dedicava à história, como é o caso desta obra em questão.

Mas Huxley não é um literato comum. Com a fome e o método de um historiador, Huxley investiga arquivos, cartas e documentos da época para recontar sua história. E o faz recheado de reflexões e interpretações dignas de um filósofo da história. Portanto ler esta obra de Huxley é como ler um manual de história escrito de forma romanceada. Ou um romance escrito de forma histórica, pode escolher. O fato é que sua escrita é rica tanto em detalhes quanto em conclusões e nos faz refletir a respeito dos vários aspectos da história que ele nos conta. 

O tema em questão é a igreja católica do século XVII, mais especificamente um caso que teria ocorrido em uma pequena cidade francesa chamada Loudun. Huxley nos conta a história de Grandier, um pároco libertino, amante das mulheres e dotado de uma invejável capacidade para a oratória. Como nos informa a frase do início deste texto, esta era prática comum entre os religiosos, que muitas vezes não tinham sequer a decência de esconder suas concubinas e filhos bastardos. Este era o caso de Grandier. Para se justificar, o pároco havia escrito um tratado sobre o celibato, onde buscava argumentos para justificar a desobediência do mesmo:

"Grandier faz uso de fois argumentos principais contra o celibato. O primeiro pode ser resumido no seguinte silogismo: 'Uma promessa de cumprir o impossível não é obrigatória. Para um homem jovem, a castidade é impossível. Logo, nenhum voto que requeira tal castidade é obrigatório' (...) Não estamos obrigados a promessas obtidas através de coação. 'O sacerdote não adota o celibato por apreciá-lo, mas somente para ser admitido nas ordens sacras' (...) O resultado de tudo isto era que Grandier se sentia inteiramente livre até mesmo para o casamento". 

Note a forma inteiramente original que o pároco usa para se justificar por seus atos e aplacar sua consciência. Podia até ser que perante a sociedade, ele estivesse fazendo algo abominável. Mas para ele, era perfeitamente aceitável. E este é apenas um exemplo entre muitos outros casos que existiram na época. Claro que com este comportamento, Grandier angaria inúmeros inimigos. E numa época em que as possessões e a inquisição ainda existiam, isso podia ser perigoso. E realmente foi, pelo menos para o pobre Grandier. 

Não muito longe dali, um grupo de freiras começa a ter estranhos comportamentos. Logo se dá o veredicto: possessão demoníaca. E são os próprios "demônios" quem acusam sua fonte: feitiços realizados por Grandier. Claro que o pároco nunca havia feito nada contra as freiras, muito menos mexido com feitiçaria. O pároco podia ter todos os defeitos do mundo, mas daí a se meter com feitiços já seria demais. Por trás desta acusação estava o desejo e a rejeição da prioresa que liderava as freiras, Joana dos Anjos. Após nutrir um profundo desejo para com Grandier e ser rejeitada, a mesma inventa a possessão e leva consigo todas as outras freiras numa insanidade coletiva. Aliás este deve ser o caso de 90% dos processos inquisitoriais, movidos quase sempre por ódios, invejas ou outros motivos, digamos, mais "laicos". 

Logo os inimigos de Grandier se aproveitam do caso, e passam a fazer exorcismos com as freiras e a promover espetáculos dantescos, durante os quais as freiras revelavam até os modos como haviam sido enfeitiçadas e possuídas por Grandier. Neste ponto, Huxley tece bastantes comentários sobre a psicologia moderna e tenta explicar as alucinações e delírios das freiras a partir de manifestações do inconsciente e outras teorias psicológicas. E assim ele prossegue com a narrativa, mesclando a descrição dos fatos com análises e interpretações, tecendo um verdadeiro tratado de micro-história. 

A partir da história descrita por Huxley, vários elementos da história da Igreja vem a tona, como a vida cotidiana dos padres e sua dificuldade em manter a castidade, os interesses escusos por trás da inquisição e sua forma pouco eficaz de investigação e julgamento (haja visto que bastava alguém acusar um outro de ser bruxo era suficiente para se mover um processo contra a pessoa), e a relação entre a pressão psicológica que sofriam os religiosos e inúmeros surtos e neuroses que estes desenvolviam, muitas vezes confundidos com possessões demoníacas. 

Todos os fatos apresentados por Huxley são retirados de documentos, livros e cartas escritos pelos próprios personagens ou pessoas que com eles conviveram, mas a forma com que narra a história faz com que ela se torne interessante e de agradável leitura. Huxley não era historiador, mas sua obra me lembrou e muito a obra de um italiano que escreve sobre um personagem durante a mesma inquisição, e que é considerado criador de um novo estilo de se fazer história, conhecido como micro-história. Trata-se de Carlo Ginzburg, e a obra é "O Queijo e os Vermes".

Talvez seja exagero tratar a obra de Huxley como de história. Afinal, não sabemos até que ponto ela contém um lado ficcional. Mas também todo historiador não é, em última instância, também um ficcionalista, dando sua versão e interpretação dos fatos que estuda? 

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