
Mas Huxley não é um literato comum. Com a fome e o método de um historiador, Huxley investiga arquivos, cartas e documentos da época para recontar sua história. E o faz recheado de reflexões e interpretações dignas de um filósofo da história. Portanto ler esta obra de Huxley é como ler um manual de história escrito de forma romanceada. Ou um romance escrito de forma histórica, pode escolher. O fato é que sua escrita é rica tanto em detalhes quanto em conclusões e nos faz refletir a respeito dos vários aspectos da história que ele nos conta.

"Grandier faz uso de fois argumentos principais contra o celibato. O primeiro pode ser resumido no seguinte silogismo: 'Uma promessa de cumprir o impossível não é obrigatória. Para um homem jovem, a castidade é impossível. Logo, nenhum voto que requeira tal castidade é obrigatório' (...) Não estamos obrigados a promessas obtidas através de coação. 'O sacerdote não adota o celibato por apreciá-lo, mas somente para ser admitido nas ordens sacras' (...) O resultado de tudo isto era que Grandier se sentia inteiramente livre até mesmo para o casamento".
Note a forma inteiramente original que o pároco usa para se justificar por seus atos e aplacar sua consciência. Podia até ser que perante a sociedade, ele estivesse fazendo algo abominável. Mas para ele, era perfeitamente aceitável. E este é apenas um exemplo entre muitos outros casos que existiram na época. Claro que com este comportamento, Grandier angaria inúmeros inimigos. E numa época em que as possessões e a inquisição ainda existiam, isso podia ser perigoso. E realmente foi, pelo menos para o pobre Grandier.

Logo os inimigos de Grandier se aproveitam do caso, e passam a fazer exorcismos com as freiras e a promover espetáculos dantescos, durante os quais as freiras revelavam até os modos como haviam sido enfeitiçadas e possuídas por Grandier. Neste ponto, Huxley tece bastantes comentários sobre a psicologia moderna e tenta explicar as alucinações e delírios das freiras a partir de manifestações do inconsciente e outras teorias psicológicas. E assim ele prossegue com a narrativa, mesclando a descrição dos fatos com análises e interpretações, tecendo um verdadeiro tratado de micro-história.
A partir da história descrita por Huxley, vários elementos da história da Igreja vem a tona, como a vida cotidiana dos padres e sua dificuldade em manter a castidade, os interesses escusos por trás da inquisição e sua forma pouco eficaz de investigação e julgamento (haja visto que bastava alguém acusar um outro de ser bruxo era suficiente para se mover um processo contra a pessoa), e a relação entre a pressão psicológica que sofriam os religiosos e inúmeros surtos e neuroses que estes desenvolviam, muitas vezes confundidos com possessões demoníacas.

Talvez seja exagero tratar a obra de Huxley como de história. Afinal, não sabemos até que ponto ela contém um lado ficcional. Mas também todo historiador não é, em última instância, também um ficcionalista, dando sua versão e interpretação dos fatos que estuda?