Navegando sem rumo em meu próprio site, encontrando lembramças e memórias soltas, eis que me deparo com este belíssimo texto que escrevi há quase 10 anos atrás, que foi publicado neste blog (que possuia outro nome) na edição de setembro de 2002. Fiquei profundamente tocado e resolvi trazer aos dias atuais, pois é um de meus textos favoritos. Por favor, comentem e deixem suas opiniões:
O Beijo da Morte
Há muitos dias já não se levantava da cama. A cada dia mais fraca, já não tinha cor em seu corpo. Quem a olhasse de perto poderia ver suas veias através da pele. Estava assim desde a última visita do médico, e a confirmação do inevitável. Tinha uma doença muito rara, pulmões atacados, e logo todo o resto do corpo junto. Não havia remédio. Morreria antes de completar 17 anos. A mãe já não trabalhava, nem saia de casa mais. Passava os dias chorando em seu quarto, como se a filha já estivesse morta. O irmão mais velho tentava animá-la, mas ele próprio sentia-se mal cada vez que entrava no quarto sombrio e via sua irmã deitada, olhos perdidos no nada, como que esperando pela própria morte. O tempo foi passando e a menina piorava a cada dia. Agora já não conseguia mais se levantar, sequer podia mexer-se no leito. Mas não morria. Parecia haver ainda algo a fazer neste mundo. E realmente havia. A morte esperou até o dia de seu aniversário. Confusa, a família se reunia na cozinha para discutir o que deveriam fazer, afinal aquela poderia ser sua última festa de aniversário. Mas não sabiam se deveriam realizá-la, frente às condições da menina. Enquanto todos discutiam, mal perceberam que a figura magricela e esbranquiçada os observava da porta. Todos tomaram um susto. Como conseguira se levantar da cama? Frente ao silêncio que se fez, a garota expôs seu plano. Queria ir à uma festa. E sozinha. A família achou um absurdo. Onde já se viu, sair neste estado? Mas a menina estava decidida. Aquele era seu último aniversário, e ela queria aproveitar ao máximo. Com muito custo deixaram. E lá foi a menina. Pegou um ônibus e logo estava na frente da boate mais famosa da cidade. Na verdade o que ela queria era apenas uma coisa: dar seu primeiro e último beijo. Não queria morrer sem Ter esta sensação. Só precisava encontrar a pessoa certa. Apesar da doença, a garota estava bonita em seu longo vestido azul-marinho. Os cabelos lisos e longos, amenizavam seu aspecto terminal. Em um esforço extremo adentrou o recinto. Ficou um pouco tonta com as luzes piscantes e o som alto. Mas logo acostumou-se. Sua excitação a mantinha de pé. Era só isto o que lhe restava agora. Já não andava, flutuava sobre o solo. Procurou uma mesa para se sentar e ficou a observar a multidão se sacolejar ao som daquelas batidas ensurdecedoras. Ficou a noite toda ali, esperando. Logo o lugar começou a esvaziar. Perdeu as esperanças. Seu destino era morrer assim, sem provar o sabor de outros lábios. Resolveu ir embora. Se levantou, mas uma vertigem a fez perder os sentidos. Lentamente o corpo foi caindo, com a leveza de uma pluma. De repente dois braços a apararam antes que seu corpo chegasse ao chão. O rapaz olhou pra sua face sem expressão e uma profunda ternura o invadiu. Lentamente a levou pra fora, para tomar um ar. A garota desperta alguns minutos depois. Olha em volta e seus olhares se encontram em um sorriso. O rapaz a ajuda a se levantar, enquanto ela pensa se morreu ou está sonhando. Felizmente, nenhum dos dois. Longe dali, sentados em um banco de praça, os dois conversam olhando as estrelas. Já é tarde, e nem o leve sereno a preocupa mais. Não ali, naquele momento mágico. Em um instante seus olhares se cruzam. Sua respiração se torna ofegante e ela pensa que vai morrer. Suas bocas se encontram inevitavelmente, em um beijo com gosto de sangue. Estava feito. Naquele breve momento, se sentiu mais viva do que jamais sentira em toda sua vida. Horas depois a multidão se aglomera na praça pra ver seu corpo inerte coberto por sangue. Mal perceberam o leve sorriso que havia em seus labios...
(Baseado em conto de Nelson Rodrigues)