16 de nov. de 2015

"A demonização do outro": notas sobre o fundamentalismo religioso


O fenômeno do fundamentalismo tem crescido cada vez mais em nossa sociedade. Em um mundo cada vez mais plural e diversificado, a necessidade de se apegar a algo sólido e que dê uma sensação de estabilidade é apontada como uma das principais razões para o crescimento das religiões de cunho fundamentalistas. A extrema liberdade que nos cerca traz junto a ela a falta de certezas e, consequentemente, o vazio existencial. Não é a toa que a depressão é considerada o mal do século.
Uma grande parcela da população parece ter extremas dificuldades em lidar com as "liberdades", haja vista o crescimento cada vez maior de movimentos que visam suprimir a liberdade dos "outros", como a liberdade de se relacionar com uma pessoa do mesmo sexo ou de praticar uma outra religião (ou até mesmo não ter nenhuma). O combate a estas liberdades é o motor das religiões fundamentalistas que, amparadas por uma leitura própria das escrituras que consideram como sagradas, se acham no dever de "combater o bom combate", trazendo para o seu lado, se afastando ou, em alguns casos, até eliminando aqueles que pensam diferente. 


Estes são os principais elementos que compõem um pensamento fundamentalista. Primeiramente a existência de um "livro sagrado" que dá o fundamento às ideias propagadas; em segundo lugar, a supressão da liberdade de pensamento, uma vez que no interior de uma religião fundamentalista não é permitido pensar diferente, todos tem que aceitar igualmente as "verdades" pregadas; em terceiro, a noção de comunidade, que acolhe a todos que abdicam do direito de pensar por si só e abraçam as "verdades" da religião; em quarto, a negativização do outro, daquele que pensa diferente, quase sempre associando suas ideias e práticas a algum ser maligno (no caso dos fundamentalistas cristãos, ao demônio); em quinto lugar, o proselitismo, ou seja, a necessidade de converter o maior número de pessoas a sua própria fé, "salvando-os" das garras do inferno; por último, falta um dos principais elementos de uma religião fundamentalista: o líder religioso, ou seja, aquele que manipula as "verdades" contidas no livro sagrado para convencer os fiéis a segui-lo. 

Segundo o mestre em ciências da religião, prof. Ivo Pedro Oro, na obra "O outro é o Demônio: uma análise sociológica do fundamentalismo" (1996), a figura do líder é essencial na manutenção de uma religião de cunho fundamentalista, e sua atuação visa criar no fiel uma extrema dependência à sua figura: 

A forma como são efetuadas as relações entre líder e fiéis impede o fiel de crescer e amadurecer (...). Não havendo uma reflexão conjunta, a dependência em relação ao líder vai se reproduzindo indefinidamente. O líder fundamentalista é diferente de um mestre espiritual. (...) É próprio do fundamentalismo, porém, criar dependência. (...) Ele vai reproduzindo em seus adeptos a dependência e a submissão (ORO, 1996, p. 111). 

A submissão está na raiz do fundamentalismo. Não existe a religião se não houver submissão por parte dos seguidores. Não se pode discordar das ideias propagadas pelo líder religioso, uma vez que elas são consideradas como "verdades absolutas", provenientes do livro sagrado que dá fundamento ao pensamento religioso. Ao fiel, é proibido portanto pensar por si só e ter ideias próprias a respeito de sua religião. O resultado disto é uma estagnação intelectual e uma profunda ausência de censo crítico. O fiel está disposto a aceitar tudo o que provém de sua religião como verdadeiro e defendê-la a todo custo. 

A verdade é só uma - aquela revelada -, e a autoridade espiritual também deve ser apenas uma: o seu líder. Dessa forma, questionar a verdade ou duvidar do líder estaria num mesmo plano: seria fazer eco ao relativismo presente no mundo e faltar o chão firme na travessia da vida terrena (ORO, 1996, p. 113). 

A autoridade neste caso provém portanto da fusão destes dois elementos: os discursos do líder religioso e sua utilização das mensagens contidas no livro sagrado. Nenhum destes elementos podem faltar, uma vez que é o líder quem proporciona aos fiéis a verdadeira interpretação das mensagens contidas neste livro. Assim, não é ao fiel que cabe interpretar as mensagens contidas no livro sagrado, mas apenas ao líder religioso é permitido fazê-lo. Tais mensagens são colocadas como imutáveis e invariáveis: 

O líder consegue impor sua autoridade sobre os fiéis, de modo inquestionável, lançando mão de verdades do passado, estabelecendo-as como imutáveis. É a mensagem portadora de verdades sagradas do passado que dá legitimidade ao líder fundamentalista (ORO, 1996, p. 117). 

Como só ele tem autoridade para interpretar as "verdades" contidas na mensagem, o líder religioso não aceita ser questionado. Mesmo que a ciência comprove que muitas das mensagens contidas neste livro não podem ser verdadeiras, o líder religioso utiliza de sua autoridade para fazer com que seus fiéis ignorem, mantendo-se assim fiéis apenas ao que é pregado. Ir contra as mensagens repetidas pelo líder é como se desviar para o lado do "inimigo". 

A autoridade é mantida a qualquer custo, mesmo ao da abolição das evidências. Pode-se dizer que é precisamente isso que acontece no fundamentalismo. Negar algum dos seus fundamentais (sic) é o mesmo que declarar-se herege ou desviado pelo demônio (ORO, 1996, p. 119). 

Mas, no processo de implantação das "verdades absolutas" retiradas do "livro sagrado", nem tudo neste livro é levado em conta. Apenas aquilo que interessa ao líder no estabelecimento de sua comunidade. O fundamentalismo é, portanto, seletivo. Há uma gradação de importância nas mensagens contidas neste livro. Um exemplo disto é a bíblia das religiões fundamentalistas cristãs. Ao mesmo tempo em que elas se utilizam de um versículo deste livro para condenar o homossexualismo (Levítico 20: 13), ignoram vários outros, como o que prevê o apedrejamento de filhos mal criados (Deuteronômio 21: 18-21) o que condena que se corte o cabelo e faça a barba (Levítico 19:27) ou que se coma carne de porco (Levítico 11:07). Portanto: 

Não se trata de uma volta pura e simples ao passado. Apenas algumas verdades, leis e instituições são seletivamente transplantadas do passado para o presente e transformadas em algo cimentado e estruturado para todo o sempre (...). Textos "descontextualizados" são aplicados sem nenhuma espécie de mediação hermenêutica a todas as situações e circunstâncias da vida (ORO, 1996, p. 120). 

Não importa para o fundamentalista que seu livro sagrado tenha sido escrito há mais de 2 mil anos atrás, em uma sociedade totalmente diferente da nossa. O fato de acreditar que ela tenha inspiração divina faz com que ele a aceite sem questionar, e queira aplicar alguns de seus preceitos (a maioria deles completamente sem sentido para a sociedade atual) nos dias de hoje. Assim, a liberdade de pensamento é trocada pela certeza da salvação. É isto o que importa para a comunidade religiosa fundamentalista: saber que ela faz parte de um grupo privilegiado e especial: o grupo dos escolhidos por deus. Ao aceitarem as verdades desta religião e abrirem mão de uma série de coisas, consideradas como "coisas do mundo", os fieis acreditam que em troca serão salvos de um virtual inferno pós-morte. Oro assim descreve esse deus fundamentalista:  

O deus que ele descobre e experimenta é um deus poderoso, guerreiro, severo e, ao mesmo tempo, um deus particularista, já que defende e salva somente aqueles que lhe são fiéis e constituem seu povo eleito. A vivência numa comunidade calorosa, a certeza de estar em comunhão com seu deus e de viver a fidelidade a ele, aumenta nesses fiéis seu fervor religioso e sua valentia para o combate ao inimigo (ORO, 1996, p. 114-115). 

Baseados na crença neste deus, e de pertencerem a uma espécie de "povo eleito", superior a todo o resto da humanidade que não compartilha de suas crenças, o fiel fundamentalista está pronto para o "combate". Este combate tem diferentes interpretações em cada religião: em algumas, trata-se de converter o máximo possível de fiéis; em outras, de negar ao outro, atribuindo-lhe um caráter maligno; e por último, em alguns casos, o combate é literal, ou seja, trata-se de eliminar a existência do outro. 

Os fundamentalistas colocam-se em oposição aos outros, mesmo cristãos, por não viverem radicalmente, ou melhor, literalmente, os axiomas da fé, e em oposição às maiorias sociais. (...) Esses eleitos e fiéis defendem suas posições entricheirados nos seus grupos e comunidades. Os outros, que não estão no caminho da salvação e não aderem à verdade, são o inimigo. (...) Os que a eles se contrapõem, assumindo outras posições, são vistos como ameaça e, por isso mesmo, combatidos. (...) Aqueles inimigos são demonizados. Não estão com a verdade. Estão sendo seduzidos e guiados pelo demônio. E como Satanás está solto, é preciso lutar e combater (ORO, 1996, p. 127-128). 


Tudo isto está na raiz dos movimentos fundamentalistas modernos. Por isto presenciamos tantos atos violentos contra religiões diferentes, seja violência simbólica ou física. Atos como agressões verbais a membros de religiões afro-brasileirasapedrejamentos de membros de outras religiões; invasões e destruições de terreiros; até chegarmos aos recentes atos terroristas ocorridos em Paris por radicais islâmicos, guardadas suas devidas proporções e contextos, tem por trás de si o fundamentalismo religioso e a tentativa de se eliminar ao "outro". 

A certeza de estar imbuído da "verdade absoluta", única e inabalável torna o fiel fundamentalista uma pessoa autoritária, avessa à liberdade de pensamento e que despreza aos que não acreditam nas "suas" verdades. Isto, na sua visão, o autoriza a perseguir e combater aos "infiéis", em alguns casos até mesmo chegando à violência física. Na sua visão, tal violência é legítima, uma vez que se trata de um "servo de deus" combatendo um "servo do demônio". A cegueira fundamentalista não lhe permite enxergar o mundo como ele realmente é, ele enxerga apenas o mundo distorcido pelas visões ultrapassadas incutidas em seu livro sagrado e manipuladas pelo seu líder religioso, na maioria dos casos em troca de altos valores monetários. 

Referência

ORO, Ivo Pedro. O outro é o demônio: uma análise sociológica do fundamentalismo. São Paulo: Paulus, 1996. 

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