23 de abr. de 2013

Funk e feminismo


Recentemente uma nova polêmica se instalou nas redes sociais, chegando à TV. A história começou com a divulgação da notícia de uma aluna, Mariana Gomes, que foi aprovada na seleção do Mestrado da UFF (Universidade Federal Fluminense), no RJ, com um projeto que pretende discutir as relações entre identidade, feminismo e indústria cultural no funk. A notícia recebeu bastante destaque na internet, inclusive com divulgação em alguns programas de TV. E a polêmica maior se instalou quando, exibido como reportagem em um jornal da emissora SBT, o projeto da garota e o funk receberam comentários ácidos por parte de sua apresentadora, Rachel Sherazade, afirmando, entre outras coisas, que "o funk está anos luz do feminismo", e que a música "fere os ouvidos" da apresentadora. Mariana Gomes enviou uma carta aberta como resposta às críticas da jornalista, com argumentos bastante contundentes, que vem sendo divulgada em alguns blogs e sites. 

De cara, o que se pode depreender disto tudo é a falsa ideia que alguns jornalistas possuem de confundir a função do jornalista com a de um crítico de notícias, habilitado a emitir opinião sobre tudo o que seu jornal noticia, mesmo que ele não entenda patavinas do assunto em questão. Este foi precisamente o caso da jornalista e de vários outros, que todos os dias nos bombardeiam com as mais superficiais "opiniões" e "críticas" sobre diversos assuntos, dos quais nunca se dignaram a ler sequer uma linha sobre. É como se junto com o diploma de jornalista viesse uma carteirinha de "sapo", habilitando-o a emitir sua rasa opinião sobre tudo. Claro que não me refiro àqueles jornalistas que se especializam em um determinado assunto, e passam grande parte do tempo estudando e se aprofundando para poder fazer a melhor cobertura do tema, como temos vários no meio esportivo, político e econômico. Me refiro aos Boris Casoys da vida, que se transformam em verdadeiras metralhadoras giratórias, destilando ignorância a cada notícia, como fez esta Rachel Sherazade e fazem tantos outros por aí. 


Mas tais reflexões não estão isoladas em nossa sociedade. Elas são, de certa forma, generalizadas, e partem de algumas ideias e estereótipos construídos e que sobrevivem em meio ao senso comum. O primeiro estereótipo é a noção hierarquizada de cultura construída ao longo da história por alguns intelectuais e reproduzida maciçamente pela mídia. Tal definição, cristalizada no inconsciente coletivo brasileiro, parte do princípio de que o termo "cultura" passa necessariamente por um viés limitante, que é a definição do que tem qualidade ou não. Portanto, para ser denominado "cultura", o objeto em questão deve ser aprovado por um conjunto de indivíduos considerados aptos para tal. Essa noção incide sobre as diversas modalidades artísticas diariamente. É comum vermos pessoas se referindo a este ou aquele estilo musical como "falta de cultura" ou não válido como expressão "artística". 


Tal definição está assentada também em uma distinção histórica entre "cultura de massa" e "cultura de elites". A chamada "cultura de massa", que sempre existiu na história da humanidade, sempre foi preterida em nome de uma certa "cultura de elite", que recebe o status de "verdadeira cultura". Para se referir a apenas alguns exemplos históricos que me lembro de cabeça, no Brasil do início do século XX o Samba era discriminado pelas elites por ser considerado música inferior, ritmo de crioulos e falta de cultura, enquanto as elites que se pretendiam europeias buscavam a música clássica como influência maior. Hoje o Samba está entre os ritmos considerados patrimônios de nossa cultura, e outros ritmos mais populares (pelo menos numericamente) são perseguidos em nome dos mesmos argumentos outrora utilizados contra ele, como o Axé, o Sertanejo e o Funk. 


Portanto, para desmistificar essas noções, devemos buscar o conceito de Cultura. Entre os antropólogos e historiadores, existem inúmeros conceitos e definições diferentes. Geertz, Levi-Strauss, Keesing, Bhabha, Canclini, Stuart Hall e vários outros escreveram livros e mais livros sobre as noções de cultura, identidade cultural e outras coisas do tipo. Mas, de uma certa forma, podemos considerar como cultura o conjunto de expressões simbólicas e materiais criadas pelos seres humanos de uma determinada sociedade. Portanto o termo cultura abrange desde ideias a respeito do mundo que nos cerca até como produzimos nossa comida, nossas roupas, etc. Entre os domínios culturais, portanto, temos a linguagem, as religiões e a arte, esta última com uma definição mais nebulosa ainda. Segundo a definição da Wikipédia:


Arte (do latim ars, significando técnica e/ou habilidade) geralmente é entendida como a atividade humana ligada a manifestações de ordem estética ou comunicativa, realizada a partir da percepção, das emoções e das ideias, com o objetivo de estimular essas instâncias da consciência e dando um significado único e diferente para cada obra. A arte se vale para isso de uma grande variedade de meios e materiais, como a arquitetura, a escultura, a pintura, a escrita, a música, a dança, a fotografia, o teatro e o cinema.


Como podemos perceber, a ideia de cultura e de arte engloba todas as manifestações citadas, sem hierarquias ou diferenciações. Mas é claro que não é tão simples assim, haja visto que em cada obra produzida existe um valor atribuído. E talvez aqui é que esteja o X da questão. A atribuição de valor a uma obra de arte perpassa por vários critérios diferentes, e inerentes a cada uma das categorias (música, cinema, etc.). Como estamos tratando aqui de música, me aterei apenas a ela. A diferença, portanto, entre um Samba e um Funk, por exemplo, são os valores sociais atribuídos a cada um dos ritmos por diferentes grupos sociais. No geral, o Samba recebe uma atribuição de valor maior do que o Funk, por ser um ritmo mais reconhecido e aceito entre as elites (que na maioria das vezes detém o poder da comunicação). Da mesma forma, ritmos como o Funk acabam sendo invisibilizados por ter valor agregado apenas entre certas minorias (não numéricas, mas minorias sociais). É um caso diferente por exemplo com o Axé e o Sertanejo, ritmos que detém valores atribuídos negativos entre certos segmentos "elitizados", mas que se fazem notar devido ao apelo comercial que possuem. De qualquer forma, todos são produções culturais e artísticas, isso não se pode negar. O que as diferencia são os valores atribuídos a cada uma delas, que são diferentes para cada segmento (uma pessoa que nasce em um meio onde o funk seja ouvido sempre tende a aceitá-lo mais facilmente do que alguém que cresce em um meio de classe média onde o ritmo seja hostilizado).  


Por último, analisemos a relação do funk com o feminismo, colocada em xeque pela jornalista e reafirmada pela aluna Mariana Gomes. Neste ponto há bastantes divergências, inclusive entre as próprias feministas. Uma das tendências (e da qual a jornalista parece querer fazer parte) é a que coloca as letras escrachadas e sexualizadas do funk como uma objetificação da mulher. Ou seja, como se pelo fato da mulher dançar de shortinho pudéssemos inferir que ela está dançando para satisfazer o apetite sexual do homem que assiste. Talvez eu concorde com esta visão em relação aos grupos musicais do final da década de 90, como É o Tchan, em que a mulher é colocada numa posição subalterna (ela não tem no grupo nenhuma posição de destaque, sua função é apenas ilustrativa, de dançar, rebolar e portanto satisfazer visualmente aos homens). 

A outra tendência, e que é mais recente e, me parece, mais bem aceita entre as feministas, é a que coloca essa nova safra de músicas de cunho sexual cantadas por mulheres como uma nova fase da liberação sexual feminina. No caso do Funk, esta relação fica mais clara pois a mulher não é mais colocada em uma posição subalterna: ela assume os microfones e canta o que te dá na telha (ou o que vende mais, mas aí já é uma outra história...), pouco se preocupando com os padrões morais vigentes (que, aliás, diga-se de passagem, são todos masculinos). À primeira vista, portanto, o fato de mulheres cantarem coisas como "a buceta é minha e eu dou pra quem eu quiser", parece ser um caso da mulher assumindo e exercendo sua própria sexualidade, e lutando contra os padrões morais masculinizados, que teimam em querer ditar como elas devem se comportar, se vestir ou agir. De qualquer forma, há sim muita relação entre o funk e o feminismo, ao contrário do que afirmou a jornalista na matéria, aliás comentário totalmente herdeiro daquela visão hierarquizada de cultura e que considera tudo o que é produzido pelas massas como algo negativo, inferior, bárbaro, no caso disfarçado de termos que consideram a música como algo "vulgar", "chulo", sem perceber que as construções do que é considerado "vulgar" ou não também perpassam por um viés cultural e social. 

O que posso concluir disso tudo é que a sociedade brasileira, de uma certa forma, ainda está assentada em valores ditados pelas elites, e que procuram afastar todo e qualquer "comportamento" que ponha em xeque a ordem estabelecida que eles acreditam existir, e que estão assentadas em conceitos como a moral, bons costumes, religião, família, etc. Tudo isso não passa de engodo para escamotear preconceitos e continuar afirmando como determinados grupos, especialmente o das mulheres, devem continuar se comportando. Engodos que, como se viu neste caso, continuam sendo defendidos e propagados por "formadores de opiniões" como é o caso da jornalista. 

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