11 de set. de 2012

"Somos todos Vadias"


A Marcha das Vadias é um movimento que tem tomado de assalto várias capitais do Brasil e do mundo e provocado discussões as mais acaloradas, tanto de aprovação quanto reprovação, tanto por parte de homens quanto de mulheres. Muito se fala, pouco se explica. Afinal de contas, alguém sabe o que reivindicam as mulheres que participam desta marcha? Alguém sabe a origem deste movimento, porque ele surgiu, qual sua história? 

Sempre pensei que antes de criticar ou emitir opinião sobre algo, temos primeiro que nos inteirar do assunto. Em vários outros posts defendi esta posição aqui, e continuo acreditando firmemente neste pressuposto. Por isto, apesar de achar interessante e simpatizar com alguns dos fatos que eu via serem divulgado na mídia a respeito desta Marcha, não havia ainda formulado opinião sobre a mesma, pois não tinha leitura nem embasamento suficiente pra isto. Esta semana foi publicada a primeira edição da Revista de História da UEG, e nela há um artigo exatamente sobre a Marcha das Vadias enquanto acontecimento histórico, discursivo e linguístico, de minha colega profa. Amanda Pontes Rassi. Após a leitura do mesmo, minha vontade é de que todos o lessem antes de falar qualquer coisa sobre o assunto. Assim, este texto é no sentido de chamar atenção para a discussão que é tratada pela profa. no referido artigo e divulgá-lo para que possamos compreender melhor este acontecimento.

Antes de mais nada, precisamos compreender como e porque surgiu o movimento da Marcha das Vadias. Ele não acontece a revelia nem de forma descompromissada. Um fato pontual é a causa deste movimento e está na raiz de suas reivindicações, e conhecer esta história nos ajuda bastante a compreendê-lo:

Em janeiro de 2011, ocorreram vários casos de estupro na Universidade de Toronto, para os quais o policial Michael Sanguinetti deu uma infeliz declaração: “as mulheres deveriam evitar se vestir como vadias para não serem vítimas”. O policial justificou a atitude dos estupradores como uma consequência natural às provocações das mulheres, pois, segundo ele, a culpa não era do estuprador, e sim das mulheres que se vestiam como vadias. 

A fala deste policial me fez lembrar uma outra, desta vez de um brasileiro, que em um programa de humor fez a seguinte piada: 


Toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia... Tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus. Isso pra você não foi um crime, e sim uma oportunidade. Homem que fez isso não merece cadeia, merece um abraço.

Colocações como esta estão na raiz de movimentos como a Marcha das Vadias, e nos mostram como nossa sociedade ainda opera em termos machistas. Na primeira fala do policial, há uma inversão de valores em que as vítimas são colocadas como, no mínimo, co-autoras do delito. Ou seja, ao se vestirem com roupas curtas e provocantes, elas estão abrindo mão de seu corpo e o colocando á disposição, portanto não podem reclamar de serem estupradas, pois é como se elas estivessem pedindo por isto. No segundo discurso produzido, o ato de violência sexual é minimizado e justificado como uma provável "boa ação" por parte do criminoso. Discursos como este fizeram com que várias mulheres se reunissem para protestar, dando origem ao movimento conhecido como Marcha das Vadias. 

A primeira manifestação ocorreu em 3 de abril de 2011, em Toronto (Canadá), e vem ganhando destaque em outros países. O movimento ganhou força e um nome: MARCHA DAS VADIAS. Só no Brasil, a Marcha das vadias – ou slutwalk, em inglês – já percorreu Brasília, Salvador, Fortaleza, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Belo Horizonte, Recife, Vitória e outras cidades. Em cada cidade, grupos de mulheres organizam a manifestação e vão às ruas “vestidas como vadias”, de salto alto, roupas provocantes, fantasias sexuais, lingeries etc., para protestar contra a crença de que mulheres que são vítimas de estupro sejam responsáveis pelo crime.

A escolha do nome e uso do termo "Vadia" foi proposital. Na fala do policial, as mulheres seriam estupradas por agirem como vadias. O termo “vadia” ou “vagabunda” – traduzida do inglês slut –, usado de forma pejorativa, ganhou repercussão mundial em vários dos principais jornais e em redes sociais, e, em decorrência disso, movimentos feministas decidiram organizar protestos em vários países, revidando contra opiniões machistas e preconceituosas, como a do policial, que não é uma opinião isolada, mas reflete grande parte do pensamento das sociedades patriarcais no mundo inteiro.

Tais discursos, como afirmado pela autora, representam certo consenso entre nossa sociedade, que ao ver uma mulher vestida com roupas curtas, costuma condená-la e adjetivá-la. Se fizermos uma comparação com o universo masculino, o mesmo não ocorre. Tais discursos são construídos desde a infância, em que o menino é incentivado a buscar o sexo como uma forma de se afirmar socialmente, enquanto as mulheres recebem educação contrária, são incentivadas a evitar o sexo sob risco de serem desprezadas socialmente. Os estudos de gênero vem exatamente para mostrar que tais discursos não são naturais, como muitos querem fazer crer, mas sim construídos e atribuídos a homens e mulheres.

Uma das principais causas das lutas feministas hoje é a igualdade de direitos, direitos econômicos, políticos, trabalhistas, etc., e uma das reivindicações buscadas na Marcha das vadias é em relação à igualdade de direitos de comportamentos. As mulheres negam as concepções e os pré-construídos associados a sua imagem para defender que elas não querem ser o que esperam delas, não são santas e isso não as torna putas; recusam os rótulos de submissas e de devotas, admitindo apenas uma etiqueta: “ser livre”.


No âmbito sexual talvez esta luta seja mais clara e inglória. Durante décadas as mulheres na sociedade brasileira foram subjugadas e consideradas submissas no âmbito político, econômico, sexual, etc. Vários avanços se deram ao longo dos anos, mas muito há que se fazer ainda. As ideias de que a mulher seja um objeto sexual para proporcionar prazer ao homem, e de que o sexo serve para a procriação caem por terra quando as mulheres exigem os mesmos direitos dos homens: ter prazer, sentir orgasmo e aproveitar o sexo como forma de felicidade. Esses temas, considerados tabus até hoje pela igreja e outras formações discursivas mais conservadoras, são hoje alvo de disputa, de luta, de reivindicação por igualdade de direitos.

A busca por esta igualdade em relação ao sexo, porém, não significa que a violência sexual se justifique. Muito mais do que uma discussão a respeito de sexo, esta é uma discussão a respeito da violência. Estupro é um ato de violência como qualquer outro, e deve ser combatido. Assim como o único responsável por um ato de violência é aquele que a pratica. Inverter a lógica porém é uma artimanha do discurso opressor para escamotear a relação de poder que se estabelece entre homens e mulheres. É o que nos afirma a autora neste trecho:


a manifestação desconstroi a ideia de que abuso sexual tem a ver com sexo, por meio da negação no enunciado “Isso não é sobre sexo. É sobre violência”. A campanha feminista da Marcha das Vadias também traz essa ideia materializada pelo enunciado “Menos violência. Mais orgasmos!”, que reitera a ideia de que as mulheres também querem sexo e querem sentir orgasmos, mas não a custa de violência, demarcando as fronteiras entre esses dois conceitos.

Tais reivindicações tem provocado uma ressignificação no próprio vocabulário utilizado pelos opressores. A escolha das palavras nunca é despretensiosa, ela sempre revela os jogos de poder intrínsecos em cada relação. É o caso por exemplo dos binômios "civilização" e "tribo", o primeiro utilizado para as sociedades europeias e o segundo para sociedades africanas, asiáticas e americanas, revelando um forte sentido ideológico que hierarquiza e despreza certos modelos sociais: nós temos civilização, eles tem tribo. É a mesma lógica de termos como "cultura" e "folclore", sendo folclore utilizado para classificar as culturas dos outros, considerados inferiores. Assim também acontece com o termo "vadia" que demarca bem a posição que é atribuída à mulher na situação. 

Mas assim como ocorrem com outros termos, há uma tentativa de positivação deste termo a partir do momento em que ele é reivindicado pelo grupo como bandeira de luta. É o caso por exemplo do termo "macumba" atribuído às religiões afro-brasileiras e que tomou um sentido pejorativo ao longo dos anos, mas hoje é ressignificado ao ser adotado pelas próprias religiões afro para se designarem: "sou macumbeiro com orgulho". O termo assim é utilizado com uma conotação de luta e reivindicação de liberdade. É o que acontece com o termo "vadia":

Um vocábulo, que antes de 2011 era um termo pejorativo, indicando julgamento negativo para mulheres, está adquirindo hoje um novo significado. A partir do momento em que as mulheres se intitulam “vadias”, elas põem em cheque aquele antigo conceito.Segundo a antropóloga Julia Zamboni, “ser chamada de vadia é uma condição machista. Os homens dizem que a gente é vadia quando dizemos ‘sim’ para eles e também quando dizemos ‘não’. A gente é vadia porque a gente é livre”.


A reivindicação de liberdade e controle do próprio corpo fica clara nesta fala. Ao se assumir como "vadia", as mulheres se assumem como detentoras da mesma liberdade que possui o homem: de se vestir como quiser, de ir aonde quiser, de fazer sexo com quem, quando e aonde quiser. Um dos cartazes da marcha traz a seguinte frase: "Um homem sem camisa: a) tá com calor b) vai jogar bola c) quer ser estuprado, claro!" Tal frase provoca uma inversão de papéis e nos faz refletir sobre os discursos atribuídos a homens e mulheres. O jogo da linguagem sugere que, se invertermos os papéis e pensarmos no significado de uma mulher sem camisa, a primeira ideia que seria instaurada pelo discurso machista é de que a mulher queira ser estuprada. De forma irônica, o cartaz joga com as duas posições contendo um mesmo sentido – de querer ser estuprado – sentido este que antropologicamente não pode ser associado à posição de sujeito do homem, por isso causa estranhamento.

Assim, o próprio termo "vadia" está tomando novos sentidos e atribuindo novos significados ao papel da mulher em nossa sociedade. O uso do nome “vadias” faz referência ao termo usado pelo policial para designar as mulheres e é, ao mesmo tempo, uma forma de protesto contra o conceito de “ser vadia”. As palavras de ordem da manifestação são “Se ser vadia é usar saia curta; se ser vadia é usar roupas coladas; se ser vadia é usar decotes e brincos grandes; se ser vadia é dançar funk; se ser vadia é ser livre; então somos todas vadias”. O conceito do termo se desloca do interior de uma formação discursiva machista para o interior de outra formação discursiva ligada ao feminismo, e muda o valor negativo do vocábulo para um julgamento positivo, com força de contestação.

Esperemos que tais acontecimentos tragam frutos para a forma de se pensar a mulher nos dias de hoje. Vi muitas mulheres criticando a Marcha e questionando a forma de se portar e se comportar daquelas que participaram da mesma. Mas ao buscarmos compreender melhor seus sentidos, vemos que a manifestação reivindica apenas o direito à liberdade: de ser "vadia" ou "santa", casta ou o que quer que seja, mas única e exclusivamente por escolha da mulher. E concluindo com as palavras da profa. Amanda:

A Marcha das vadias não representa apenas um acontecimento histórico, mas principalmente um acontecimento discursivo: o nome “vadias” foi posto em cheque para conquistar um novo significado, transformando-se assim numa palavra de ordem do movimento feminista. Se até um ano atrás, o termo possuía um único significado – de valoração pejorativa, inclusive – hoje ele se transformou em um nome com poder, com poderes subjacentes, pois visa a transformar a visão de uma sociedade sobre a concepção: o que é ser vadia, e o que é ser mulher.
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Leia o artigo completo:

Do acontecimento histórico ao acontecimento discursivo: uma análise da “Marcha das vadias”
Autora: Amanda Pontes Rassi, publicado na Revista de História da UEG

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